Adão e Eva se encontram casualmente num restaurante e iniciam um bate-papo descontraído. Atraídos um pelo outro, ela pelo executivo que nem ao menos sabe dançar como havia afirmado e ele pela mulher falante apreciadora de sucos exóticos com gostos duvidosos, os dois, após juras de amor por telefone, decidem casar-se em menos de 24 horas.
A peça bem-humorada, interpretada por Kely Nascimento e Robson Vellado, retrata os conflitos do casal no cotidiano, a conseqüente ída ao analista e a importância da flexibilidade na resolução de problemas por meio da doação de amor, da atenção e da paciência. Ao final, Adão entende que doou vida a Eva, por meio de sua costela.
Sem carregar o rótulo de crente, nem apontar diretamente para o divino, a peça Adão e Eva - O Clássico, em cartaz até 26 de novembro no Teatro Ressureição, em São Paulo (SP), tem atraído espectadores interessados tão simplesmente por um bom enredo. Com algumas pitadas "lights" de carinho entre o casal, a peça ganha elogios do público pelos ensinamentos cristãos atrelados ao caráter humorístico.
"Quando vamos levar uma mensagem retratando a vida das pessoas, para que elas se identifiquem, inserimos o beijo [técnico], como parte de um casamento, de um namoro. Mas eu sempre paro para pensar se realmente tem necessidade ou se é possivel interpretar a situação, artisticamente, de outra forma", disse Kely Nascimento, autora da peça, que protagonizou o espetáculo ao lado do marido, o ator Norton Nascimento, que faleceu em 2007.
O limite entre o profano e o sagrado
Entre tramas para televisão, teatro e cinema, atores cristãos têm concepções variadas sobre o limite entre o profano o sagrado. Cenas de sensualidade e nudismo, como prevêem algumas encenações, são colocadas em xeque por alguns e situações naturais para outros, que defendem tais encenações como parte da construção de uma telenovela, por exemplo, na reprodução dos valores da sociedade.
"Vamos supor que eu tenha que aparecer com o bumbum de fora. Até aí eu não me incomodo. [...] Eu, como cristão, se faço uma cena dessas, não vejo maldade. Eu vou focar o meu olhar para aquela cena acontecer usando a minha técnica como ator, mas sem o desejo sexual. Eu estou blindado pela santidade, sou um cara fiel à Palavra. Deus vê o coração", afirmou o ator Matheus Petinatti, que repetiria as cenas de nudez que realizou na telenovela Xica da Silva, apresentada pela Rede Manchete em 1995 e reprisada pelo SBT dez anos mais tarde. Para ele, convertido há dois anos, o problema é quando há malícia, originada pelo pecado de Adão e Eva ao desobedecerem o mandamento dado por Deus de não comerem o fruto proibido.
Na opinião do pastor Arlindo Barreto, um dos intérpretes do palhaço Bozo na década de 80 e 90, tais cenas podem ser comparadas à prostituição, se o artista tem conhecimento das Escrituras. "No caso daqueles que nunca ouviram as Boas Novas do Evangelho, estariam apenas usando seu corpo como instrumento de expressão artística, pois não têm a consciência do pecado", argumentou.
A preservação do corpo, indicada na Bíblia como o templo do Espírito Santo, é uma das orientações de Paulo no primeiro livro de Coríntios (6-18-19). Dessa forma, Kely Nascimento assegura: "Minha vida com Deus está acima da minha profissão. É obvio que não estamos falando da prostituição do sexo pelo dinheiro como quando se trata de contratar alguém para uma relação sexual de fato, mas de instigar nas pessoas a um desejo fora do casamento, que é a vontade de Deus. Uma relação sexual é bem diferente de um beijo técnico".
A arte imita a vida?
Para Thiara Palmieri, a "Amanda" de três temporadas de Malhação (Rede Globo), os comportamentos transmitidos pelas telenovelas é que devem mudar. "Embora a novela seja uma obra aberta, o autor tem controle do que ele escreve. Eu acho que precisamos de autores capazes de levarem valores cristãos para as famílias. Se precisar usar o beijo técnico, não vejo problema. Você já viu o filme Prova de Fogo? O final é lindo com aquele beijo".
Ana Paula Almeida, ex-paquita da Xuxa e também atriz, concorda com a utilização do beijo técnico nas tramas, a fim de aproximar o enredo da realidade. "Já conversei com o meu marido e não tem problema. O problema é o depois disso. O resto, como uma cena de cama ou de nu, eu já sou contra", disse a ex-Pituxinha, que destaca os relacionamentos extra-ficção, formados pelo contato dos atores. "Vemos muitas trocas de casais entre artistas porque as pessoas confundem o personagem e vivem aquele romantismo da novela. Está muito vulgarizado. Fica nesse rodízio de relacionamento entre uma novela e outra. Eu acho complicado".
Reproduzir os valores seculares, como uma cena de sexo fora do casamento, não são encarados por Petinatti como um obstáculo. "A história reproduz o que acontece na sociedade. Eu faria. Isso acarreta em adultério, mas não é o Matheus que está adulterando, é o personagem", defende o ato,r que também não vê empecilho para interpretar um homossexual, "desde que seja cômico, um estereótipo". "Se for para mostrar uma relação, talvez eu não aceite".
Entre os papeis que o ator não aceitaria, estão os de traficantes, viciados em drogas e assassinos. "Para mim, nesses casos existe muito mais carga espiritual do que fazer uma cena de sexo na cama", aponta Petinatti, que tem como projeto abrir uma casa de recuperação para dependentes químicos sem condições financeiras.
Atuar no secular
Em meio à diversidade de propostas, nem sempre compatíveis com suas crenças, atores e atrizes têm decidido deixar a carreira secular e, de maneira a conciliar a vocação com o propósito evangelístico, têm utilizado a arte a favor do Reino.
Thiara optou por se dedicar às artes cênicas como um ministério na Igreja Bola de Neve de Campinas (SP), ainda em fase de implementação. Evangélica há seis anos, a atriz conta que parou de fazer novelas na Globo em razão dos convites que surgiram para os próximos folhetins. "Eu não queria invadir o lar das pessoas com personagens que não tinham nada a acrescentar. O Senhor me cobrou uma postura em relação a isso. Eu seria muito hipócrita ao fazer algo contra a Palavra. Na verdade, não é que eu parei de trabalhar, eu entreguei o meu trabalho para Jesus", explica Thiara, que aprova as cenas de sensualidade dependendo do contexto.
"Se for um casal em lua de mel ou uma menina que se guardou para o marido, glória a Deus, porque os valores cristãos estão sendo respeitados. [...] Uma cena de sexo pode ser maravilhosa, um exemplo é quando Ester se apresenta ao rei da Pérsia. É uma história de amor", reflete a atriz, que se surpreendeu ao saber da minissérie sobre a rainha judia que será exibida no final do ano pela Rede Record. "É Mesmo? Então demos o passo certo!".
Convidado pelo diretor Walter Avancine para desempenhar o personagem de um redator chefe de um jornal na telenovela Brasileiros & Brasileiras, no SBT, Arlindo Barreto, hoje intérprete do palhaço Mr. Clown - considerado pelo ex-Bozo como o Embaixador do Reino de Deus - e presidente do ministério Artistas de Cristo, surpreendeu o elenco, direção e técnicos. "Quando chegou o dia de gravar minhas cenas ,trocaram o meu roteiro alegando que as cenas apimentadas eram para subir o 'íbope', descrevendo cenas eróticas com a atriz Isadora Ribeiro. Aleguei a impossibilidade de tornar a fazer aquilo que fiz durante muitos anos no cinema , teatro e novelas. Abandonei o set de gravação certo de que jamais voltariam a me convidar novamente, pois havia queimado uma das pontes que me ligavam ao passado".
De modo semelhante, Caíque Oliveira, líder do bem sucedido grupo teatral Jeová Nissi, abandonou o teatro secular há cerca de nove anos, quando entregou sua vida para Jesus Cristo. "Foi muito natural, pois via nitidamente que não era o lugar que eu devia estar. Era como se eu estivesse usando o dom que Deus me deu para o propósito errado", explicou.
Desde então, tem apresentado junto ao Jeová Nissi peças cristãs como O Jardim do Inimigo, Jó e A Senha, em denominações evangélicas e conquistado de forma surpreendente a identificação do público. "Quando começamos, a igreja achava que teatro era somente pantomima. Chegamos com a proposta de um espetáculo de duas horas de duração e com texto nos moldes de um teatro secular, as pessoas ficaram alucinadas e entenderam que poderiam se divertir, serem impactadas e ao mesmo tempo sentirem a presença de Deus no meio de uma apresentação", enfatizou.
Manter a integridade dos seus valores é um desafio para quem se propõe a continuar exercendo a profissão em tramas cuja seleção cuidadosa dos papeis é uma constante. "O Northon [Nascimento] sempre foi seletivo com seus trabalhos mesmo antes de se converter. Ter conhecido Jesus só veio reforçar a necessidade de ter critérios e a convicção de que não precisamos nos sujeitar à propostas que não fazem parte daquilo que temos como verdade em nossas vidas. Eu posso dizer não faço isso, ou não quero aquilo... Sou livre, em Jesus, para não prostituir meus valores com Deus", aponta Kely Nascimento.
Recém-formada, Ana Perche desistiu de atuar após ter tido, em 2004, uma "postura religiosa". "Foi mais achismo meu, uma vontade de querer fazer tudo certinho", disse Ana, que havia resolvido deixar os palcos após se posicionar diante de Deus. Hoje, a líder de uma das células da Igreja Bola de Neve no bairro da Lapa, em São Paulo (SP), tem refletido sobre voltar a atuar no secular. Enquanto busca um direcionamento de Deus, Ana estuda jornalismo na Faculdade Cásper Líbero.
"Lá no Encontrart [Festival de Artes do Jeová Nissi] houve muitas profecias. A Nívea Soares falou que muitos artistas ali teriam seu trabalho reconhecido por artistas do mundo e que talvez fossemos chamados para trabalhos que aparentemente não pareciam ser de Deus, mas é que o Senhor quer de fato converter as artes para Ele", disse Ana, que participou do encontro que contribuiu para lhe fazer acreditar que é possível "estar no mundo e ainda honrar e Deus", com ressalvas nas escolhas dos trabalhos.
Por Felipe Pinheiro
Fonte: GUIA-ME.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário