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domingo, 17 de abril de 2011

Na terra do poderia


Por Ilana Casoy (*) / Foto principal: Ana Ottoni

Quais seriam os dados necessários para se fazer uma análise criminal precisa e acurada do massacre realizado na escola do bairro de Realengo, no Rio de Janeiro? Por que não podemos nos precipitar em dar respostas que ainda não temos? Como se faria isso?
Os sobreviventes serão ouvidos pela polícia, e cada um contará o que viveu. Excessos à parte – que serão observados quando uma ou outra criança contar fatos de forma exagerada pela própria sugestionabilidade da idade e da situação de vítima –, saberemos o que de fato aconteceu dentro das salas de aula.
Devemos esperar os depoimentos oficiais, coletados pela polícia, melhor treinada para interrogar sem conduzir a narração. Alguns jornalistas, mesmo sem intenção, colocaram as respostas que esperavam obter das testemunhas embutidas nas perguntas. Além disso, com os laudos periciais, estes testemunhos serão confrontados com os dados periciados.
São muitas as perguntas ainda sem comprovação. Muitas dúvidas serão esclarecidas a partir dos trabalhos técnicos de polícia e perícia. A perícia apresentará os laudos do local do crime (apesar da prejudicada preservação pela ação ali ocorrida), laudos necroscópicos, reconstrução de trajeto e trajetória – balística, exame das roupas das vítimas alvejadas, exame e laudo do computador do assassino e a reconstrução da ação criminosa. Neste caso não é necessária a reprodução simulada dos fatos; não haveria objetivo a ser cumprido utilizando-se essa técnica.
A polícia fará o levantamento do histórico do assassino, de familiares e colegas dele, ouvirá o depoimento de testemunhas oculares e de familiares das vítimas. Investigará a existência de prontuário médico do autor, os contatos do assassino pela internet, se houve treinamento anterior com armas de fogo (com quem e onde), confrontará os dados periciais com os depoimentos obtidos e também fará a reconstrução da ação criminosa.
Conclusões precipitadas
Sem respostas oficiais, somos facilmente levados a conclusões precipitadas. Já colecionamos algumas:
- Colegas do assassino que o viram há pelo menos 10 anos se lembraram de detalhes macabros sobre sua personalidade, coisas que passaram totalmente despercebidas na ocasião. Criticaram seu modo de vestir à época, estranho para o grupo escolar, porém, totalmente compatível com o grupo de sua igreja.
- Muito se falou de sua preferência de gênero ao cometer o crime, que seria por meninas. Esse dado não se confirmou na totalidade dos atingidos: de 24 crianças alvejadas, 12 eram meninas e 12 meninos. Muitos descreveram motivos sexuais para o ato, sem levar em conta que no crime em massa essa é a mais rara das motivações. Ninguém questionou.
- A carta em que o assassino descreveu seus desejos pós-morte nos apresentava apenas a ideia de que achou que controlaria o rito, não continha nada mais que os procedimentos de sua própria religião para essa ocasião. Foram analisados como uma mensagem secreta, islâmica, delirante, doente, quando apenas se podia concluir que ele se julgava tão no controle do evento que achou que poderia conduzir ações depois de não estar mais vivo.
- Hipóteses da participação do assassino em grupos terroristas foram levantadas. De indivíduo isolado e calado, passara a agir em grupo, relacionar-se sem problemas com gente de mesma ideologia. Que ideologia? Por que não aguardar o exame de seu computador, onde peritos poderão avaliar em que grau de proximidade ele se relacionava nas comunidades ou sites de redes de relacionamento pessoal?
Reflexões
- Doentes mentais, pela mentalidade “pregada” nas entrevistas, deveriam praticamente ser “separados ao nascer”, segregados da sociedade por toda vida. O estigma da esquizofrenia volta com força total, mesmo depois de ter sido trabalhado exaustivamente em uma novela, para derrotar o preconceito. Dessa forma, voltaremos a excluir aqueles que mais precisam de inserção. Sobre doença mental, nesse triste episódio, ouvimos de tudo: psicopata, esquizofrênico, esquizo-paranóide, esquizóide, delirante, psicótico, “robotizado”. Analisa-se o comportamento durante a ação criminosa, dispensa-se o “paciente” e pronto: o diagnóstico está dado. Como se não fosse mais necessário verificar fatos, histórico pessoal e mental. Não seria melhor aguardar a confirmação das hipóteses? Sim, porque se esse rapaz, no passado, foi diagnosticado por um médico, e a polícia há de encontrar o prontuário. Se ele tomava ou tomou remédios controlados, onde estão os registros? Em sua casa foi encontrado algum medicamento? Alguma droga?
- O bullying, problema importante que permeia a adolescência de quase todos, seja como agressor, seja como vítima, agora é causa de criminalidade. Como se pudesse explicar de A a Z todo comportamento distorcido. Esqueceu-se de falar sobre a graduação do sofrimento e da agressão, da rapidez e eficiência da intervenção da instituição e seus profissionais, da diferença que pode fazer o entendimento sobre o assunto, não para que essas situações acabem por decreto ou pena, mas que sejam mais rapidamente interrompidas e seus danos reparados.
 - Nesse momento, nerds, calados, introspectivos e introvertidos, tímidos em geral, estão agora marcados a ferro como suspeitos. Propuseram-se até mesmo reuniões mensais em escolas para detecção de indivíduos “esquisitos”. Qual a definição de “normal” que será utilizada?
- As vítimas estão aturdidas. Muitos profissionais desfilaram seus discursos sobre a desesperança, o estresse pós-traumático, o trauma, o medo de voltar à escola, o “estado de choque” ou “frieza” diante de algum depoimento equilibrado. Ninguém se preocupou em ouvir aqueles que já passaram por isso, mesmo no Brasil, ainda que em menores proporções. Não se recuperaram? Não seguiram em frente? Que métodos funcionaram e quais deveriam ser descartados?
- Políticos não deixaram de fazer seu próprio uso da tragédia, ressuscitando projetos de detectores de metal em escolas, pretendendo que cada instituição dispusesse de policiais militares na porta, propondo plebiscitos recém realizados, fazendo um discurso de guerra para uma situação rara e isolada. A legislação de emergência, feita com base na comoção popular com o objetivo de ganho político, é vergonhosa.
Postura da imprensa
Estou preocupada com a cobertura da mídia sobre o caso do atirador de Realengo. Muitos profissionais ousaram fazer inferências, suposições e diagnósticos na “terra do poderia”. Em um primeiro momento, de comoção nacional, isso é compreensível. Todos nós humanos, profissionais na área criminal ou não, buscamos respostas e tentamos de boa fé ajudar a população a digerir fatos tão graves. Mas agora, em um segundo momento, temos de refletir, pois como disse o psiquiatra forense Daniel Martins Barros, “tem chute melhor e chute pior, mas é tudo chute”.
Por fim, mas não menos importante, agora acontece a mais perigosa das condutas: a divulgação e exploração do vídeo em que o assassino dá seu depoimento antes do massacre, algo planejado para impactar, com claro objetivo de “deixar sua mensagem”, explicar seumodus operandi e seus atos (como se fosse possível), os tornando heroicos, como tantos já fizeram. Nasce uma lenda, o mito de um assassino em massa que alcança o status de celebridade nacional, entrando pelas nossas casas com seu discurso planejado. Enquanto em outros países decidiu-se não dar voz a assassinos desse tipo, aqui lhe deram transmissão digital. Não é possível participar desse tipo de análise, que serve apenas para fortalecer o perpetrador de tragédia tão impactante. Transmitir a mensagem desse assassino equivale a enterrá-lo de acordo com suas instruções.

(*) Ilana Casoy é pesquisadora de mentes criminosas, escritora e membro consultivo da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP)
FONTE: ARCA UNIVERSAL

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